quinta-feira, 29 de maio de 2008

Câmera Invisível

{maneiras de ver, construção do repertório}

Se uma câmera focalizasse Benjamin na hora do almoço, captaria um homem longilíneo, um pouco curvado, com vestígios de atletismo, de cabelos brancos mas bastos, prejudicado por uma barba de sete dias, camisa para fora da calça surrada aparentando desleixo e não penúria, estacionado em frente ao Bar-Restaurante Vasconcelos, tremulando os joelhos como se esperasse alguém. Benjamim entretanto não espera nada, a não ser que ele mesmo resolva o dilema: entrar num bar-restaurante ou voltar para a cama. A questão é embaraçosa porque Benjamim não tem sono, nem sede, nem apetite, nem alternativa para esta tarde. Preso ao chão, as pernas irrequietas, impacienta-se com a própria hesitação, e é nessas conjunturas que lhe costuma voltar a sensação de estar sendo filmado.
Adolescente, Benjamin adquiriu uma câmera invisível, por entender que os colegas mais astutos já possuíam as suas. O equipamento mostrou-se tão providencial quanto um pente de bolso, e a partir daquele dia a vida dele tomou novo rumo. Benjamin passou a usar topete, e nas pendengas em que antes se descabelava, certo de estar com a razão, mantinha agora um sorriso vago e deixava o adversário gesticular de costas para a câmera. Com isso ganhou prestígio e beijou na boca de muitas garotas, cujos ombros, orelhas e rabos-de-cavalo foram imortalizados em suas películas. O acervo de Bnejamin também guarda dublagens de cantor de jazz, saltos de trampolim, proezas no futebol, brigas de rua em que sangrou ou se saiu bem e a sua estréia no sexo com uma senhora de idade (trinta anos, trinta e um, trinta e três), quando ele quase estragou a cena ao olhar para lente. Fez-se filmar durante toda a juventude, e só com o advento do primeiro cabelo branco decidiu abolir a ridícula coisa. Era tarde: a câmera criara autonomia, deu de encarapitar-se em qualquer parte para flagrar episódios medíocres e Benjamin já teve ganas de erguer a camisa e cobrir o rosto no meio da rua, ou de investir contra o cinegrafista, à maneira dos bandidos e dos artistas principais. Hoje ele é um homem amadurecido e usa a indiferença como tática para desencorajar as filmagens. Mas quando entra no Bar-Restauante Vasconcelos, ainda o incomoda a suspeita de uma câmera talvez acoplada ao bico do ventilador de longas pás que gira no teto. Benjamin não pode ignorar que daquele improvável ponto de vista, os fregueses circulariam sentados num carrossel e ele próprio seguiria num redemoinho até o centro do salão, faria piruetas, daria ordens ao garçom como a um satélite e fugiria às tontas para o banheiro.

Chico Buarque, Benjamin - Cia. das Letras, 1995

Um comentário:

Nan disse...

Eu coloquei esse trecho do livro do Chico Buarque porque achei muito interessante o fato do personagem adquirir uma câmera invisível... É como se ressaltesse seu papel de expectador ao mesmo tempo que constrói o filme, enquanto assiste, alheio, a tudo. Alheio no sentido de apenas observar, de realmente olhar e ver o mundo como ele é, prestar atenção nele. E o autor se refere a isso como um repertório mesmo que Benjamin cria de todas suas experiências, daquilo que vivenciou e viu. Ah, não sei... Hahushashsua! Mas é muito interessante fazer isso (ter sua câmera invisível)!! Experimentem!