segunda-feira, 19 de maio de 2008

Brasil Diarréia (ii)

(continuação do Brasil Diarréia)

  Chega de luto, no Brasil!
  O Brasil e a "cultura brasileira" parecem aspirar a uma forma imperialista "paterno-cultural".
  Quando o que realmente conduziria a uma ascendência universal deveria ser (o que não significa que o será) algo baseado numa experimentalidade comum nos países novos, i qye implicaria ainda mais posições definidas globais.
  Mas parece que essas posições se desvaneceram quase que por completo (salvo, é luta, que persistem um nível experimental criador): a falta total de caráter floresce hoje no Brasil - não me refiro somente à "cultura" e "contexto cultural"; o conceito limita e amesquinha tudo; quero me referir a uma coisa global, que envolve um contexto maior de ação (incluindo os lados ético-político-social); de onde nascem as necessidades criativas: mais particularmente aos "hábitos" inerentes à sociedade brasileira: cinismo, hipocrisia, ignorância, concentram-se nisso a que chamo de convi-conivência: todos "se punem", aspiram a uma "pureza abstrata" - estão culpados e esperam o castigo - desejam-no. Que se danem.
  É preciso entender que uma posição crítica implica inevitáveis ambivalências; estar apto a julgar, julgar-se, optar, criar, é estar aberto às ambivalências, já valores absolutos tendem a castrar quaisquer liberdades; direi mesmo: pensar em termos absolutos é cair em erro constantemente- envelhecer fatalmente; conduzir-se a uma posição conservadora (conformismos, paternalismos; etc.); o que não significa que não se deva optar com firmeza: a dificuldade de uma opção forte é sempre a de assumir as ambivalências e destrinchar pedaço por pedaço cada problema. Assumir ambivalências não significa aceitar conformisticamente todo esse estado de coisas; ao contrário, aspira-se então a colocá-lo em questão. Eis a questão.
  E a questão brasileira é ter caráter, isto é, entender e assumir todo esse fenômeno, que nada deva excluir dessa "posta em questão": a multivalência dos elementos "culturais" imediatos, desde os mais superficiais aos mais profundos (ambos essenciais); reconhecer que para se superar uma condição provinciana estagnatória, esses termos devem ser colocados universalmente, isto é, devem propor questões essenciais ao fenômeno construtivo do Brasil como um todo, no mundo em tudo o que isso possa significar e envolver. Nossos movimentos positivos parecem definir-se como, para que se construam, uma cultura de exportação: anular a condição colonialista é assumir e deglutir os valores positivos dados por essa condição, e não evitá-los como se fossem uma miragem (o que aumentaria a condição provinciana para sua permanência); assumir e deglutir a superficialidade e a mobilidade dessa "cultura", é dar um passo bem grande - construir; ao contrário de uma posição conformista, que se baseie sempre em valores gerais absolutos, essa posição construtiva surge de uma ambivalência crítica.
  Maior inimigo: o moralismo quatrocentão (de origem branca, cristã-portuguesa) - brasil paternal - o cultivo dos "bons hábitos" - a super autoconsciência - a prisão de ventre "nacional".
  A formação brasileira, reconheça-se, é de uma falta de caráter incrível: diarréica; quem quiser construir (ninguém mais do que eu, "ama o Brasil!"!) tem que ver isso e dissecar as tripas dessa diarréia - mergulhar na merda.
  Experiência pessoal: a minha formação, o fim de tudo o que tentei e tento, levou-me a uma direção: a condição brasileira, mais do que simplesmente marginal dentro do mundo, é subterrânea, isto é, tende e deve erguer-se como algo específico ainda em formação; a cultura (detesto o termo) realmente efetiva, revolucionária, construtiva, seria essa que se ergueria como uma Subterrânea (escrevi um texto com esse nome, em setembro 69, em Londres): assume toda a condição subdesenvolvimento (sub-sub), mas não como uma "conservação desse subdesenvolvimento", e sim como uma..."consciência para vencer a super paranóia, repressão impotência..." brasileiras; o que mais dilui hoje no contexto brasileiro é justamente essa falta de coerência crítica que gera a tal convi-conivência; a reação cultural, que tende a estagnar e se tornar "oficial" (mais do que burocrática, essa coisa oficial existe como reação efetiva), é a que predomina nesse estado atual: p. ex., a crítica que as idéias de "Tropicália" geraram ao culto do "bom gosto" (isto é, a descoberta de elementos criativos nas coisas consideradas cafonas, e que a idéia de cafona conduz à glorificação permanente de coisas passadas (olha-se pra trás): hoje há uma febre reacionária de "saudosismos" e "redescoberta de valores", velhaguardismo; a crítica da "tropicália" ao "bom gosto" da bossa nova, era e é ambivalente e específica - a generalização diluidora dela, é reacionaríssima. Isso é um pequeno exemplo. Quer dizer das coisas maiores, mais gerais? A idéia de vanguarda, viva e efetiva em alguns, torna-se mera "compilação" na maioria da chamada crítica de arte. Por isso digo: a omissão consciente, ou melhor, pular fora, pode ser mais importante para a "cultura brasileira" revolucionária, do que participar no contexto imediato "policiado" - exemplo máximo: os mais importantes músicos populares do Brasil, Gil e Caetano, para sobreviverem e levarem avante as transformações começadas, tiveram que pular fora - o que criam, em inglês em Londres, queiram ou não, é a continuação dessa revolução na música brasileira: o caso deles é extremo e é nele mesmo a denúncia desse policiamento moralista-paternal-reacionário vigente hoje no Brasil (há uma espécie de mentalidade geral a la "Flávio Cavalcanti", a mais nociva) - não se trata de um acidente" nesse contexto: é um estado geral de coisas e vem ao encontro de mentalidade diarréica do país. Mas algo importante e efetivo nasce disso: essa "cultura defensiva" que não quer "pecar" copulando com o mundo, é obrigada a engolir o fenômeno da universalização de seus grandes criadores (seus na medida em que pertençam a um mesmo contexto) - quem poderá ignorar esse fenômeno gigantesco da bossa-nova nos Estados Unidos: Tom Jobim virou Musak - mais do que "sucesso no exterior", o fenômeno é reversível (e age afetiva e diretamente nesse contexto: urge aos que criam construir algo que se erga como uma face-Brasil no mundo; um criador como Jorge Ben, que estava esquecido, vê-se hoje que era precursor e é continuador dessa revolução; e que contribui na criação dessa face-Brasil: com a Tropicália foi retomado e sua importância reconhecida - recentemente estourou na promoção internacional da MIDEM; sua poesia-música roça a idéia de "experimental" - é portanto, um fator construtivo e revolucionário na diluição geral. Não ocorrera a Tropicália, pergunto eu, teria isso acontecido? Mais do que acidente, esse caráter experimental ergue-se como algo positivo e caracteristicamente revolucionário nesse contexto (outros exemplos, muitos poderiam ser aqui invocados). Não existe "arte experimental", mas o experimental, que não só assume a idéia de modernidade e vanguarda, mas também a transformação no comportamento-contexto, que deglute e dissolve a convi-conivência.
  No Brasil, portanto, uma posição crítica universal permanente e o experimental são elementos construtivos.
Tudo o mais é diluição na diarréia.

Brasil Diarréia, de Hélio Oiticica in Crítica de Arte no Brasil: Temáticas Contemporâneas. FERREIRA, Glória.

Brasil Diarréia

{pensamentos; aparência nítida}

  O que importa: a criação de uma linguagem: o destino da modernidade do Brasil, pede a criação desta linguagem: as relações, deglutições, toda a fenomenologia desse processo (com inclusive, as outras linguagens internacionais), pede e exige (sob pena de se consumir num academismo conservador deveria submeter-se ao fenômeno vivo: o deboche ao "sério": quem ousará enfrentar o surrealismo brasileiro?
  Quem sou eu para determinar qual ou coo será essa linguagem? ou será um nada (conservação-diluição)? Sei lá. A diluição está aí - a conviconivência (doença típica brasileira) parece consumir a maior parte das idéias - idéias? frágeis e perecíveis, aspirações ou idéias? Assumir uma posição crítica: a aspirina ou a cura?
  Ou a curra: ao paternalismo, à inibição, à culpa.
  Estado de coisas atualmente: porque se precisa e se procura algo que "guarde e guie" a cultura brasileira? e não vêem que essa "cultura" é já um conceito morto.
  Hoje cultiva-se o policiamento instituição-cultural, no Brasil. Cultivam-se as tradições e os hábitos (fala-se em perigos + perigos, mas a maioria corre o perigo maior: o da estagnação desse processo que parece sofrer retrocessos ou borrações no seu crescimento - estamos na fase máxima das borrações: o empastelamento retro-formal - por exemplo: pintura, desenho, gravura, escultura: que importa que se as façam ou não: com isso ou com o anúncio de que "não morreram" ou a pergunta "morreu ou não?" etc., procura-se desviar o problema, que é o de uma posição altamente crítica, para um lado absoluto que não procede neste caso; tudo é feito propositadamente como defesa das instituições que se abrigam no conceito de "artes plásticas" e de suas promoções paternalistas: salões, bienais, principalmente a de S. Paulo).
  Sou contra qualquer insinuação de um "processo linear"; a meu ver, os processos são globais - uma coisa é certa: há um "abaixamento" no nível crítico, que indica essa indeciso-estagnação - as potencialidades criativas são enormes, mas os esforços parecem mingalar, justamente quando são propostas posições radicais; posições radicais não significam posições estéticas, mas posições globais vida-mundo - linguagem-comportamento. Dizer-se que algo chegou "ao fim", assim como a pintura, p. ex. (ou como o próprio processo linear que determina essa idéia) é importante, o que não quer dizer que não haja quem não o faça; dizer que ela acabou é assumir uma posição crítica diante de um fato, é propor uma mudança; propor uma mudança é mudar mesmo, e não conviver com o banho de piscina paterno-burguês ou com o mingau da "crítica d'arte" brasileira.
  A pressa em criar (dar uma posição num contexto universal a esta linguagem-Brasil, é a vontade de situar um problema que se alienaria, fosse ele "local" (problemas locais não significam nada se se fragmentam quando expostos a uma problemática universal; são irrelevantes se situados somente em relação a interesses locais, o que não quer dizer que os exclua, pelo contrário) - a urgência dessa "colocação de valores" num contexto universal, é o que deve preocupar realmente àqueles que procuram uma "saída" para o problema brasileiro. É um modo de formular e reformular os próprios problemas locais, desaliená-los e levá-los a conseqüências eficazes, Por caso fugir ao consumo é ter uma posição objetiva? Claro que não. É alienar-se, ou melhor, procurar uma solução ideal, extra - mais certo é sem dúvida, consumir o consumo como parte dessa linguagem. Derrubar as defesas que nos impedem de ver "como é o Brasil no mundo, ou como ele é realmente" - dizem: "estamos sendo 'invadidos' por uma 'cultura estrangeira' (cultura, ou por hábitos estranhos, música estranha, etc'.)" como se isso fosse um pecado ou uma culpa - o fenômeno é borrado por um julgamento ridículo, moralista-culposo: "não devemos abrir as pernas à cópula mundial - somos puros" - esse pensamento, de todo inócuo, é o mais paternalista e reacionário atualmente aqui. Uma desculpa para parar, para defender-se - olha-se demais para trás - tem-se "saudosismo" às pampas - todos agem um pouco como viúvas portuguesas: sempre de luto, carpindo.